segunda-feira, julho 31, 2006

Como que se de luto me sentisse!...

Oliver Sacks Ext. de "O homem que confundiu a mulher com um chapéu" - Antropos - Relógio d'Água -1985
- Esta noite... Vê lá se percebes... Não venhas comigo. - Vou! Vou! Não te quero abandonar! - Mas há-de parecer que me dói muito... Há-de parecer que eu estou a morrer. Tem de ser assim. Não venhas ver uma coisa dessas que não vale a pena. - Vou! Vou! Não te quero abandonar! (...) - Fizeste mal. Vais ter pena. Vai parecer que eu estou morto e não é verdade... Eu continuava calado. - Percebes?... É que é muito longe e eu não posso levar este corpo... É pesado de mais...
O Principezinho, Saint-Exupéry

Um dos usos simbólicos do preto (uma vez que a cor negra está associada a morte, trevas, mal e outras conotações negativas, na cultura ocidental) é o luto. O mesmo não acontece em algumas culturas orientais onde a cor do luto é o branco. Mas Portugal (ainda) faz parte da sociedade ocidental... e neste departamento a tradição está tão enraizada (sobretudo no interior) que chega a assustar!!! Assim, há quase que uma tabela para o sofrimento de quem atravessa um período de luto:
"A esposa ou esposo, os filhos, as noras e os genros vestem-se de preto durante seis meses. Isto designa-se por luto pesado. Passados seis meses, passam a usar o luto leve até completar um ano. Usam uma camisa ou blusa preta e a calça ou saia de cor livre. Os irmãos, sobrinhos e os afilhados usam o luto leve, que dura apenas seis meses"
E poucas pessoas concebem que possa ser de outra maneira! Que, por um motivo ou outro, alguém se revolte contra este luto "tabelado", alguém queira sofrer sem que pareça um corvo (sem nenhum desmérito para o pobre animal), alguém queira homenagear quem partiu seguindo em frente, honrando os seus ensinamentos e desejos dando o melhor de si!
Não gostaria de usar este espaço para fazer ataques directos a uma ou outra pessoa mas às vezes "I just can´t help myself"!!! Por isso, aqui ficam algumas palavras:
A vida e a morte andam, quer queiramos quer não, de mãos dadas e marcam ambas presença no nosso quotidiano, em que a perenidade da vida nos recorda a inevitabilidade da morte.
É indescritível o tremendo sofrimento que advém da perda de alguém que nos é querido, pois jamais alguma palavra conseguiria abarcar uma dor que aparenta ser incomensurável. E isto, caríssimos, nada tem a ver com vestir preto um ano ou seis meses, deixar de cantar ou, até mesmo, de sorrir. Isto tem a ver com estas lágrimas que o coração chora mas que os olhos não mostram, esta dor que me consome energia, me rouba o alento e me derruba devagarinho, mesmo que o corpo insista em se mover, esta ansiedade que me aperta o peito e me sufoca tantas e tantas vezes durante o dia...
Se não me vêem de preto e se não enchugam as minhas lágrimas não sou eu que não sei sofrer, são vocês que não me sabem consolar!!!

quarta-feira, julho 26, 2006

Jantar a Dois...

Olhámo-nos um dia,
E cada um de nós sonhou que achara
O par que a alma e a cara lhe pedia.
- E cada um de nós sonhou que o achara...
E entre nós dois
Se deu, depois, o caso da maçã e da serpente,
... Se deu, e se dará continuamente:
Na palma da tua mão,
Me ofertaste, e eu mordi, o fruto do pecado.
- Meu nome é Adão...
E em que furor sagrado
Os nossos corpos nus e desejosos
Como serpentes brancas se enroscaram,
Tentando ser um só!
Ó beijos angustiados e raivosos
Que as nossas pobres bocas se atiraram
Sobre um leito de terra, cinza e pó!
Ó abraços que os braços apertaram,
Dedos que se misturaram!
Ó ânsia que sofreste, ó ânsia que sofri,
Sede que nada mata, ânsia sem fim!
- Tu de entrar em mim,
Eu de entrar em ti.
Assim toda te deste,
E assim todo me dei:
Sobre o teu longo corpo agonizante,
Meu inferno celeste,
Cem vezes morri, prostrado...
Cem vezes ressuscitei
Para uma dor mais vibrante
E um prazer mais torturado.
E enquanto as nossas bocas se esmagavam,
E as doces curvas do teu corpo se ajustavam
Às linhas fortes do meu,
Os nossos olhos muito perto, imensos,
No desespero desse abraço mudo,
Confessaram-se tudo!
... Enquanto nós pairávamos, suspensos
Entre a terra e o céu.
Assim as almas se entregaram,
Como os corpos se tinham entregado,
Assim duas metades se amoldaram
Ante as barbas, que tremeram,
Do velho Pai desprezado!
E assim Eva e Adão se conheceram:
Tu conheceste a força dos meus pulsos,
A miséria do meu ser,
Os recantos da minha humanidade,
A grandeza do meu amor cruel,
Os veios de oiro que o meu barro trouxe...
Eu, os teus nervos convulsos,
O teu poder,
A tua fragilidade
Os sinais da tua pele,
O gosto do teu sangue doce...
Depois...
Depois o quê, amor? Depois, mais nada,
- Que Jeová não sabe perdoar!
O Arcanjo entre nós dois abrira a longa espada...
Continuamos a ser dois,
E nunca nos pudemos penetrar!

José Régio